terça-feira, 17 de janeiro de 2012

As estelas do Cenáculo (I)

Numa síntese retrospectiva no tema das estelas com escrita do Sudoeste, são vários os momentos chave na história da sua investigação (percurso abordado, entre outros, em Correia, 1996; Rodríguez-Ramos, 2002; Guerra, 2007).

O momento primordial, de finais do século XVIII, assenta na obra chamada de Álbum de Cenáculo da autoria de D. Frei Manoel do Cenáculo Villas-Boas (1724-1814), considerado por uns como o primeiro arqueólogo português. Neste álbum chamado Lápides do Museo Sesinando Cenaculano Pacence (actualmente depositado na Biblioteca Pública de Évora - códice CXXIX) foi feita a primeira relação de um conjunto de estelas com escrita do Sudoeste devidamente ilustradas, na sua maioria entretanto perdidas. Uma obra feita a par de outra datada de 1791 Cuidados Literários do Prelado de Beja em Graça do seu Bispado ou Sisenando Mártir e Beja sua Pátria, que relata as descobertas das estelas, espetos de bronze e necrópoles do Baixo Alentejo.


Neste primeiro inventário, são apresentadas um total de oito estelas provenientes de pelo menos quatro sítios arqueológicos localizados entre Ourique (com indicação de cinco estelas) e Almodôvar (três estelas). Na época, juntava-se-lhe a estela de Alcalá del Rio (Sevilha), a primeira a ser referenciada a 6 de Maio de 1763 e também hoje desaparecida.

O interesse pioneiro de Villas-Boas nesta escrita pré-romana era em boa parte motivado pelo seu interesse no estudo das línguas orientais, em especial o hebraico, assim apontando uma origem oriental à escrita do Sudoeste. Próprio de uma «arqueologia ilustrativa» fiel à Bíblia, Cenáculo via nesta escrita “(…) indícios do antigo hebraico, misturado com o fenício e com eventuais influências dos povos peninsulares, celtas e turdetanos, identificados a partir das notícias do geógrafo Estrabão. Essa mescla de idiomas era, na sua opinião, justificada pela descendência de Noé que, sendo escassa, dera origem a distintos povos que conservavam línguas aparentadas, todas descendentes do antigo hebraico” (Fabião, 2011: 73).



Estela de Ourique II Beirão (1986) e a partir de Almagro Gorbea (2003)

A estela Ourique II (J.17.1 de Untermann, equivalente no Álbum de Cenáculo ao desenho nº 93) foi a única que chegou aos nossos dias, e encontra-se hoje em exposição no Museu Regional de Beja. O seu desenho no Álbum não é o único, tendo dado origem, por ocasião da visita do espanhol José Andrés de Cornide (entre 1798 e 1801) a uma outra ilustração com a legenda: “Inscripon Celtica del campo de Ourique / En el Gabinete del Sor Ospo de Beja en una pizarra de la forma abajo señalada”. Trata-se de um registo distinto, dado a conhecer por Martin Almargo-Gorbea (2003: 97 e 98), que mostra também um segundo desenho do mesmo autor e da mesma estela em caderno de anotações intitulado de “inscripciones de Beja recojidas por el Padre Salgado”, provável informador do Bispo de Beja.

Estão hoje desaparecidas as restantes estelas de Ourique representadas no Álbum de Cenáculo sem indicação de escala ou dimensões: Ourique IV (A. Cen. 96; Untermann J.17.2); Ourique III (A. Cen. 95; J.17.3) e Ourique I (A. Cen. 92, J.17.4), assim como Ourique V (A. Cen. 1 e 13). A esta última estela estão legendados dois desenhos, possivelmente da mesma epígrafe, embora diversos autores não a considerem como um exemplo da escrita do Sudoeste pelas ilustrações pouco fiáveis (Correia, 1996 e Untermann, 1997). Estes fragmentos terão “(…) sido achados na mesma sepultura estando um voltado «para a parte da cabeça» e outro «para a parte dos pés» ” (Beirão e Gomes, 1980: 9).



Estelas de Ourique: a partir dos desenhos do Album do Cenaculo 
e a partir das cópias de Estácio da Veiga dos desenhos do Album do Cenaculo


Algumas destas estelas poderão ter surgido integradas em sepulturas que este investigador mandou explorar nos concelhos de Ourique e Almodôvar, à semelhança do importante trabalho de recolha de informações e escavações em outras áreas do Sul do país. Porém, por não existir qualquer indicação precisa dos achados registados nas últimas duas décadas do século XVIII, não é correcto assumir uma associação directa entre a designação de proveniência de “Ourique” como sendo da actual vila ou do Cerro do Castelo (onde nos faltam informações de contextos arqueológicos desta época), pelo que se deve ter sim em consideração as escavações que Cenáculo promoveu na região dos “Campos de Ourique”, e atender às duas necrópoles que terá descoberto na base do Castro da Cola: uma a norte deste, na foz da ribeira do Marchicão, composta por doze sepulturas rectangulares (da “gente da plebe”); e outra – dos “generaes” no patamar a sueste com seis sepulturas quadradas (Vilhena, 2006: 26).


Bibliografia citada:
ALMAGRO-GORBEA, M. (2003): Epigrafía Prerromana. Real Academia de la Historia, Catálogo del Gabinete de Antigüedades, Madrid.
BEIRÃO, C. de M. e GOMES, M. V. (1980): A I Idade do Ferro no Sul de Portugal: Epigrafia e Cultura. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia.
CORREIA, V. H. (1996): A epigrafia da Idade do Ferro do Sudoeste da Península Ibérica. Porto: Ed. Ethnos.
FABIÃO, C. (2011): Uma História da Arqueologia Portuguesa. CTT Correios de Portugal.
GUERRA, A. (2007): Museu da Escrita do Sudoeste Almodôvar. Almodôvar: Câmara Municipal de Almodôvar.
RODRÍGUEZ RAMOS, J. (2002): El origen de la escritura sudlusitano-tartesia y la formación de alfabetos a partir de alefatos. Rivista di Studi Fenici. 30:2, 81-116.
UNTERMANN, J. (1997): Monumenta Linguarum Hispanicarum, Band IV. Die tartessischen, keltiberischen und lusitanischen Inschriften. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag.
VILAS-BOAS, D. F. M. do C. (1791): Cuidados literários do prelado de Beja em graças do seu bispado.
VILAS-BOAS, D. F. M. do C. (1800): "Sesinando Mártir e Beja sua Pátria". Arquivo de Beja, vol. V e seguintes.
VILAS-BOAS, D. F. M. do C. (1813): Graças concedidas por Christo no campo de Ourique acontecidas em outros tempos e repetidas no actual conforme aos desenhos de sua edade. Lisboa.
VILHENA, J. (2006): O sentido da permanência. As envolventes do Castro da Cola nos 2.º e 1.º milénios a.C. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Dissertação de Mestrado inédita). Documento Policopiado.