Um século depois de Frei Manuel do Cenáculo, o grande impulso no estudo da escrita do Sudoeste deve-se sobretudo aos trabalhos do arqueólogo algarvio Sebastião Philippes Martins Estácio da Veiga (1828-1891), que procurou a correlação das estelas com escrita do Sudoeste e o mundo das necrópoles da Idade do Ferro.
Terão sido os contactos estabelecidos entre Estácio da Veiga e o investigador alemão Emil Hübner (1834-1901), que em 1861 visita Portugal no âmbito do seu projecto de investigação Corpus Inscriptionum Latinarum, que provocaram no arqueólogo algarvio o interesse pelas antiguidades (Fabião, 2011: 140). Após a publicação de alguns trabalhos, onde se destaca de forma precursora uma concepção em que “o passado é encarado como uma continuidade” e que deve haver uma “indissociável ligação entre [o estudo d]os elementos móveis (…) e o local do seu achado” (Fabião, 2011:141 e 142), foi então incumbido oficialmente da Carta Archeológica do Algarve (1877). Nesta obra sistematiza a informação dos vestígios arqueológicos então existentes, uma novidade à época e que resulta ainda hoje numa referência obrigatória: as Antiguidades Monumentais do Algarve (1886-1891). É por isso considerado o primeiro arqueólogo profissional português (Fabião, 2011:139).
.É no decorrer deste trabalho que são identificadas, entre o interior e o limite sul do barrocal algarvio, diversas estelas. A maioria, quatro estelas com escrita do Sudoeste confirmadas e uma outra com reservas nessa atribuição, são recolhidas nas escavações que Estácio da Veiga desenvolve em Março de 1878 na necrópole de Fonte Velha de Bensafrim (Lagos), sítio que, posteriormente em 1895, António dos Santos Rocha (1853-1910) volta a intervencionar, identificando então outra estela.
De referir ainda a identificação por Estácio da Veiga em Cômoros da Portela (São Bartlomeu de Messines, Silves) de mais dois fragmentos de laje “de grés vermelho escuro” que podem pertencer a uma única estela (J.4.4). Na visita que faz ao local descreve que “as sepulturas estavam já em grande parte destruídas pelos lavradores” (Veiga, 1891: 259 e 286). Da sua autoria é também a indicação da existência de uma estela que, com muitas reservas, tem caracteres atribuíveis à escrita do Sudoeste, proveniente de Martinlongo, Alcoutim (Veiga, 1891:287). A partir de uma carta do Dr. Abel da Silva Ribeiro, refere também a notícia de que perto de Beja teriam sido encontradas outras “duas losas” com “caracteres gravados grosseiramente” e que por exclusão de partes foram considerados serem “os peninsulares” (Veiga, 1891: 202). Até aos dias de hoje, estes achados e sítios arqueológicos, situados a sua maioria no Barrocal Algarvio, delimitam o limite Sul das estelas com escrita do Sudoeste.
Fragmentos de estelas de Cômoros da Portela (Veiga, 1891: est. XXXVII)
e sua reconstituição (Untermann, 1997:230 – J.4.4).
Epígrafe de Martinlongo (Untermann, 1997:108).
A importância destas estelas com escrita do Sudoeste, e provavelmente os contactos estabelecidos entre Estácio da Veiga e o investigador alemão, resultaram na sua inclusão na obra sobre escritas e línguas pré-romanas publicada em 1893 por Emil Hübner, Monumenta Linguae Ibericae, ainda hoje um importante marco na investigação sobre o tema.
Estes achados resultaram na adjectivação da escrita como sendo “do Algarve”, igualmente referida como “escrita ibérica”, “escrita turdetânica” ou “escrita tartéssica” (Correia, 1997: 265). A definição conceptual desta escrita arrastou-se pelo menos até à primeira metade do século XX, onde era ainda assumida como “inscrições ibéricas do Algarve” (Machado, 1964: 69). Só com a resolução de algumas questões científicas relacionadas com outros conceitos associados ao tema e com a localização de mais exemplares num âmbito geográfico mais alargado entre o Alentejo e o Algarve, foi sendo assumida como “escrita do Sudoeste”, sobretudo a partir da década de 70 do século XX.
Todos estes achados algarvios de finais do século XIX ocorreram no início da arqueologia científica, que começava a privilegiar a escavação com base numa sequência estratigráfica segundo as leis geológicas, mas que muitas vezes se limitava à abertura do terreno com o objectivo de atingir a maior área possível e à recolha dos artefactos mais apelativos. Contudo, a quase ausência de escavações arqueológicas nos sítios de proveniência das estelas com escrita do Sudoeste e a natureza do trabalho em Fonte Velha de Bensafrim não permitem ter uma precisão concreta quanto aos contextos das estelas e à sua associação primária aos monumentos funerários, elementos essenciais nos dias de hoje, quando se procede não apenas a uma sistematização da informação arqueológica mas também ao debate deste tema.
Contrariamente ao pioneirismo demonstrado na metodologia de trabalho, nas conclusões obtidas noutros temas, e na cautela tida na interpretação do que ai estaria escrito referindo que “não sei ler nem tento querer ler estas inscripções” (Veiga, 1891: 302), as conclusões sobre a escrita do Sudoeste, assunto à data propício à especulação, não são motivo para recordar, pondo em causa o mérito do seu trabalho de muitos anos (Guerra, 2007: 113). Estácio da Veiga considerou, no capítulo VII do último volume das Antiguidades Monumentaes do Algarve (1891), haver uma diferença entre as estelas alentejanas e as algarvias, numa interpretação ultrapassada já pelas ulteriores investigações sobre estes materiais e período cronológico. As primeiras, publicadas por Frei Manuel do Cenáculo e identificadas entre Ourique e Almodôvar, eram consideradas por Estácio da Veiga como sendo da Idade do Bronze, pela sua associação aos estoques de bronze. Análises posteriores revelaram que apenas um estoque é deste material (Guerra, 2007: 107). Já as epígrafes do Algarve eram associadas à Idade do Ferro (Veiga, 1891: 204-207).
Esta leitura, negada pelo errado enquadramento dos estoques – apesar do reconhecimento de uma mesma escrita, em diferentes épocas e regiões, pretendia apoiar uma visão que opunha de forma obstinada Estácio da Veiga aos ”orientalistas” e à adscrição fenícia da escrita. O arqueólogo algarvio era defensor de uma maior antiguidade desta escrita, chegando mesmo a considerar uma origem Pré-Histórica, “em pleno periodo neolithico”, suportado pelo que considerava ser um paralelo nos “grafitos” cerâmicos da Cueva de Los Murciélagos (Granada) e desta forma existir uma inversão da influência da escrita. Estácio da Veiga defendia assim o aparecimento desta escrita na Península Ibérica e a sua deslocação posterior para o oriente, ciente que seria declarado “herectico” perante a “invectiva da vaidade offendida” dos que chamava serem “mais phenicios que os proprios phenicios” (Veiga, 1891: 327).
Bibliografia citada:
CORREIA, V. H. (1997) - As necrópoles algarvias da I Idade do Ferro e a escrita do Sudoeste. In Barata, M. F. (coord. Edit.), Noventa Séculos entre a Serra e o Mar, Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico, p. 265-279.
FABIÃO, C. (2011) – Uma História da Arqueologia Portuguesa. S.L: CTT Correios de Portugal
GUERRA, A. (2007) – Estácio da Veiga e as prespectivas oitocentistas sobre a escrita do Sudoeste. Xelb, Silves: Câmara Municipal de Silves. Vol. 7, p. 103–114.
MACHADO, J. L. S. (1964) - Subsídios para a História do Museu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcellos. O Arqueólogo Português, Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia. 2ª Série, nº V, p. 51 - 448.
UNTERMANN, J. (1997): Monumenta Linguarum Hispanicarum, Band IV. Die tartessischen, keltiberischen und lusitanischen Inschriften. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag.
VASCONCELLOS, J. L. de (1897) - Religiões da Lusitânia. Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional.
VASCONCELLOS, J. L. de (1913) - Religiões da Lusitânia. Vol. III. Lisboa: Imprensa Nacional.
VASCONCELLOS, J. L. de (1899-1900) - Novas inscripções ibéricas do Sul de Portugal, O Arqueólogo Português, Lisboa: MNA. 1ª Série: 5, p. 40-42.
VEIGA, S. P. M. Estácio da (1891) - Antiguidades Monumentaes do Algarve, IV. Lisboa: Imprensa Nacional.
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